domingo, 10 de julho de 2011

SEM CORAÇÃO

Por influências da crença de minha mãe, fui, junto com outras crianças, encaminhado, de bom grado, ao catecismo de “Seu” Manuel, um respeitável senhor, indicado pelo pároco local, para introduzir as crianças aos preceitos do cristianismo. O fervor católico de “Seu” Manuel, demonstrado durante as missas, e seu caráter moral, demonstrado na retidão de sua vida cotidiana, eram suficientes para que os pais lhe confiassem a formação religiosa de seus filhos.
            Fiquei assustado, porém, quando “Seu” Manuel disse que Deus seria como o vento: existe, é suscetível de ser sentido, mas ninguém O vê. Ele nos ensinou, ainda, que nós temos uma alma invisível e imortal e que esta alma é aquilo que nos move e nos torna inteligentes. Ele nos disse, também, que a vida aqui, a vida dos corpos, é uma vida passageira e, por isto, não é a verdadeira vida. Esta só adviria após nossa morte, quando nos tornaríamos alma e quando esta alma se encontrasse com Deus, não havendo mais dor, fome, miséria, separação nem morte.
            Fiquei, então, imaginando a maravilha que seria a vida imortal. Só que a vida que vinha à minha cabeça de menino era vida que eu tinha naquele momento: aquela idade, a presença de meus pais, de meus irmãos, de meus parentes e de meus amiguinhos. Todos vivos, vivendo eternamente comigo.
            Mas, para desencanto meu, vi minha avó morta. Depois, meu pai. Depois ainda, duas tias e, quando ocorreu a morte da esposa de “Seu” Manuel, este deixou o catolicismo abraçou a causa evangélica, vindo a morrer um ano depois. Recentemente, um dos meus irmãos também faleceu. Lembrei-me que o Papa João Paulo II muito se esforçara para não morrer.
            Fiquei imaginando, então, a vida daqueles que haviam partido: uma vida sem corpo. Sem a visão, não poderia ver as cores e as formas das coisas; sem a audição, não poderia ouvir os cantos dos pássaros nem escutar uma sinfonia de Beethoven; sem paladar, não poderia sentir os sabores produzidos pela culinária; sem o olfato, não poderia sentir os cheiros das flores nem as fragrâncias dos perfumes; sem o tato, não poderia sentir o calor emanado dos corpos dos amores nem o frio da cerveja. Seria, então, um mundo sem sentido, uma autoconsciência fechada sempre e eternamente em si mesma.
            Assustei-me com esta idéia, pois seria uma vida assombrada como nunca havia concebido antes. E meu assombro se tornou ainda maior, quando me dei conta de que, sem corpo, a alma não teria coração.

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