sexta-feira, 29 de julho de 2011

DOÇURAS E SUPLÍCIOS NA MESA

         Eu estava circulando pela cozinha de minha casa, quando, de repente, prestei atenção à mesa que comumente uso para fazer as refeições e fiquei assustado com o que dali inferi. Explico-me.
         A mesa é um artefato onde depositamos um dos mais primitivos desejos da humanidade: o desejo de saciar a fome. Entretanto, o homem aprendeu a sofisticar não só a mesa, mas, também, os utensílios, os alimentos, os temperos e as bebidas que são, ali, depositados, enaltecendo a sofistificação de seus desejos. Este recurso tem sido desenvolvido com tanto esmero que, de mera disposição de utensílios, de alimentos, de cores e de odores, converteu-se numa arte, a da culinária, e num conjunto de preceitos ritualísticos, denominados de etiquetas.
         Mas a mesa já foi também local de sacrifícios e de suplícios, local de ofertas e de oferendas aos deuses. Não é à toa que o cristianismo seja erigido encima do sacrifício e que seus templos tenham como lugar sagrado exatamente o local onde fica a mesa, camuflada em forma de altar. Também não foi algo fortuito Jesus de Nazaré haver feito sua simbólica despedida numa mesa, rodeado por seus discípulos. É igualmente significativo que, ali, tenha recebido o beijo que selara o início de seus suplícios.
         Parece haver um complô entre a mesa como lugar sagrado de doces sabores, de doces odores e deliciosos desejos e a mesa como lugar sagrado de dores, de suplícios e de sacrifícios. Aliás, “odores” e “dores” estão separados apenas por um “o” e esta separação traduz exatamente os dois usos da mesa.
         Talvez seja por isto que, no mundo inteiro e a cada dia que passa, o pão fique mais difícil de chegar a milhares de mesas de milhares de famílias.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

APOSTA NO AMANHÃ

            Eu estava viajando, a convite do Prof. Dr. Benedito Mendes, com um grupo de alunos do Mestrado em Meio Ambiente. Havíamos partido às 5 horas da manhã e íamos com destino aos famosos lençóis maranhenses. Um celular anuncia, entretanto, que um retardatário estava chegando num taxi. O ônibus parou no acostamento e a maioria dos viajantes desceu para tomar um rápido café no bar do posto de combustível onde havíamos parado. Fiquei, no entanto, sentado na poltrona em que eu ia, olhando displicentemente pela janela. De repente, dei-me conta de que havia uma mangueira plantada entre os limites das margens da rodovia e os limites territoriais de uma propriedade, de modo que seus frutos ficariam à mercê de quem ali passasse. Minha cabeça se pôs, então, a pensar.
            Napoleão havia ordenado aos nobres da França que plantassem árvores ao longo das estradas para que as tropas sob elas descansassem. Napoleão morre em Elba, sem que suas tropas jamais viessem a descansar sob aquelas árvores, mas, hoje, a França é cortada por enormes e belos túneis formados por aquelas árvores.
A imagem que me vem, agora, à cabeça é a dos enamorados, os quais depositam nas mãos de seus pretendentes a esperança de que o futuro poderá reservar-lhes aquilo que já faz parte de seus sonhos comuns.
Quem plantou aquela mangueira, plantou-a por um ato de esperança. É que subjacente ao ato de plantar uma árvore frutífera está a manifestação da esperança de que o plantador sobrevirá o suficiente para dela colher os frutos. Mas isto é uma aposta. Uma aposta que é motivada pela esperança, porque nenhum humano está apto a saber com certeza o que lhe irá ocorrer no tempo seguinte. É nesta aposta, no entanto, que repousam os atos humanos.
           É que em cada ato nosso há a pressuposição de que o agora de agora não nos seja mesquinho a ponto de se acabar ali. Apostamos que pelo menos algo do agora anterior escape à morte e nos possibilite ver continuidade no agora seguinte. Mais do que isto, apostamos no ato que manifestamos para que, mesmo que nosso corpo não venha sobreviver no agora seguinte, sobreviveremos no agora seguinte, por nossos atos. É que, como no amor dos enamorados, todos nós agimos na esperança de que exista o amanhã.


segunda-feira, 18 de julho de 2011

A SABEDORIA DO BURRO

           Há uma tendência generalizada de confundir o jumento com o burro. O burro é um animal produto do cruzamento do jumento com a égua ou de um cavalo com uma jumenta. Por ser oriundo de duas espécies, o burro é estéril. Mas burro é também o sujeito que só dá mancada. É o menino que não consegue aprender.
Mas aprender o quê e por quê? O aprender do burro é correr nos campos ou nas pradarias; é se deslocar em buscar de bons pastos ou de boas fontes de água; é ficar forte e andar em grupos para fugir dos predadores ou dificultar a ação aterradora destes.
Não é isto, porém, o que os humanos tentam ensinar ao burro. Pelo contrário, tentam pôr o burro para executar tarefas que os próprios humanos inventaram para martírio deles mesmos. Aliás, se lembrarmos a origem da palavra “trabalho”, iremos compreender isto. Com efeito, “trabalho” significa “martírio”, “tortura”, “ação ou lugar de suplícios e de perversidade”, tanto quando se defende que vem do latim “tripaliare”, torturar com o “tripalium”, aparelho de três paus usado para ferrar animais; quando se defende que vem de “trabaculum”, ação de usar travas (trabs) para ferrar animais.
            Ora, quem é submetido a este tipo de coisa cria um grande ódio dentro de si e, na primeira oportunidade, vai à forra. A resposta à forra costuma vir em forma de sovas. Sovas desmedidas, porquanto aplicadas com ódio. Às vezes até criminosas.
Resta ao escravo, então, fingir que trabalha. Mas o fingir tem duração curta. Logo toma lugar a revolta. Esta é interpretada como indícios de burrice, porque novas sovas advirão. Mas será mesmo burrice? Será burro aquele que não se dobra a aprender aquilo que não deve ser aprendido porquanto nada dizer a respeito de sua própria vida? Será sábio, em contrapartida, aquele que se submete a aprender o que não é útil à vida como fazem os humanos, notadamente os jovens que vivem de modismos e de consumismos esteriotipados?
Parece que há uma sabedoria na teimosia do burro que o humano tende a não admitir. É que o burro, diferentemente do cão, não se submete ao humano. Não o vê, tal como o faz o cão, como alguém que lhe é superior, mas como alguém que está no mesmo nível que ele e, nesta condição, não tem o direito de escravizá-lo. Talvez seja por isto que o burro se revolta, apanha, mas se nega a aprender. É porque este aprender está carregado de opressão e de injustiça.

domingo, 10 de julho de 2011

SEM CORAÇÃO

Por influências da crença de minha mãe, fui, junto com outras crianças, encaminhado, de bom grado, ao catecismo de “Seu” Manuel, um respeitável senhor, indicado pelo pároco local, para introduzir as crianças aos preceitos do cristianismo. O fervor católico de “Seu” Manuel, demonstrado durante as missas, e seu caráter moral, demonstrado na retidão de sua vida cotidiana, eram suficientes para que os pais lhe confiassem a formação religiosa de seus filhos.
            Fiquei assustado, porém, quando “Seu” Manuel disse que Deus seria como o vento: existe, é suscetível de ser sentido, mas ninguém O vê. Ele nos ensinou, ainda, que nós temos uma alma invisível e imortal e que esta alma é aquilo que nos move e nos torna inteligentes. Ele nos disse, também, que a vida aqui, a vida dos corpos, é uma vida passageira e, por isto, não é a verdadeira vida. Esta só adviria após nossa morte, quando nos tornaríamos alma e quando esta alma se encontrasse com Deus, não havendo mais dor, fome, miséria, separação nem morte.
            Fiquei, então, imaginando a maravilha que seria a vida imortal. Só que a vida que vinha à minha cabeça de menino era vida que eu tinha naquele momento: aquela idade, a presença de meus pais, de meus irmãos, de meus parentes e de meus amiguinhos. Todos vivos, vivendo eternamente comigo.
            Mas, para desencanto meu, vi minha avó morta. Depois, meu pai. Depois ainda, duas tias e, quando ocorreu a morte da esposa de “Seu” Manuel, este deixou o catolicismo abraçou a causa evangélica, vindo a morrer um ano depois. Recentemente, um dos meus irmãos também faleceu. Lembrei-me que o Papa João Paulo II muito se esforçara para não morrer.
            Fiquei imaginando, então, a vida daqueles que haviam partido: uma vida sem corpo. Sem a visão, não poderia ver as cores e as formas das coisas; sem a audição, não poderia ouvir os cantos dos pássaros nem escutar uma sinfonia de Beethoven; sem paladar, não poderia sentir os sabores produzidos pela culinária; sem o olfato, não poderia sentir os cheiros das flores nem as fragrâncias dos perfumes; sem o tato, não poderia sentir o calor emanado dos corpos dos amores nem o frio da cerveja. Seria, então, um mundo sem sentido, uma autoconsciência fechada sempre e eternamente em si mesma.
            Assustei-me com esta idéia, pois seria uma vida assombrada como nunca havia concebido antes. E meu assombro se tornou ainda maior, quando me dei conta de que, sem corpo, a alma não teria coração.